Por ser matéria complexa, deve existir esmero na enunciação da tese consensual para proteger a liberdade de expressão
A decisão para que as big techs deixem de, na prática, lavar as mãos diante de postagens delituosas de terceiros que atingem indivíduos e a coletividade se deu na análise sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Oito ministros já votaram. Sete consideraram em desacordo com a Carta esse trecho da lei de 2014, total ou parcialmente. Vale hoje que as plataformas só são obrigadas a remover conteúdos de usuários por decisão judicial. A punição ocorreria somente pelo descumprimento da determinação.
Mais de uma década depois de a legislação começar a vigorar, resta claro que o artigo 19 não responde aos desafios atuais de um ambiente virtual saturado de discursos de ódio, incitação a comportamentos perigosos e tentativas de lesar cidadãos. São conteúdos que em regra circulam livremente e arrebanham grande engajamento, quando não têm também alcance ampliado pelos algoritmos. Ao fim, enquanto espalham seus efeitos deletérios, são lucrativos para as big techs e contas monetizadas.
Apesar de estar definido que as empresas de tecnologia deverão ter postura mais ativa e cuidadosa, ainda se aguarda uma definição de enorme relevância: a de formular a tese a ser aplicada pelo Judiciário diante de casos concretos, uma vez que os ministros que até aqui já votaram divergiram sobre critérios de responsabilização. Deve ficar cristalino em quais situações as plataformas precisam agir por conta própria para a remoção de conteúdos, como ocorre com pornografia infantil e violação de direitos autorais _ uma prova de que as empresas têm meios de detectar ilícitos. É preciso definir os casos em que ainda será necessário uma ordem judicial e as circunstâncias em que bastaria uma notificação da vítima de crime virtual.
Por ser matéria complexa, deve existir esmero na enunciação da tese consensual para proteger a liberdade de expressão. Alguns ministros consideraram, por exemplo, que possíveis crimes contra a honra deveriam continuar submetidos ao artigo 19. A prerrogativa de opinar é, de fato, um pilar da democracia a ser sempre defendido. Mas há de se ter cautela com os que distorcem o conceito e supostamente advogam pela salvaguarda deste direito fundamental para, na verdade, tentar manter a internet como um território de vale-tudo.
O STF se debruçou sobre o tema devido à omissão da Câmara dos Deputados em votar o chamado PL das Fake News, aprovado no Senado em 2020. O mais adequado, é verdade, seria que o parlamento tratasse do tema. Ainda há tempo de o Congresso elaborar a regulamentação que achar melhor. O inaceitável seria manter a situação atual de quase terra sem lei.